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29/01/11

O que eu sinto por ti tem muitas coisas dentro. Tem carrinhos de esferas antigos e tem bonecas de trapo. Tem cartas, muitas cartas trocadas no tempo em que ainda existiam cartas de amor, quando esse ainda tinha uma breve existência. Tem carrinhos de linhas que se usavam para remendar a roupa que rompia por estar demasiado gasta. Tem palavras, palavras que se tornaram num vago som distante, palavras meio desfocadas, como quem acabou de comprar uma máquina fotográfica que ainda não sabe usar. O que sintopor ti tem o peso do tempo dentro, um peso que quanto mais tempo passa mais leve fica. Tem o amor mentolado da adolescência, o amor puro de quem ainda não percebeu que dói e que demora. Um amor simples a saber a arroz branco. Tem os passeios ao fim da tarde em ruas que já não sei o nome. Ruas que já só sobrevivem na minha imaginação. Ruas de cidade deserta ao fim de semana, ruas de aldeia que já não existe a não ser no imaginário de algumas crianças que cresceram duramente devagar. Tem os vidros embaciados de um carro em frente ao mar. Tem horas de espera elásticas. Tem horas de esperas sem fim, eu à espera de ti e tu à espera de mim. Tem o tempo perdido de quem espera calado, sem marcar encontro. Tem a ilha de sangue num lençol branco a cheirar a lavado e o espanto pela descoberta de mim. Tem calor de lareira, tem frio de neve acabada de cair. Tem o primeiro desgosto que se repete em todos os que se seguiram. Tem as histórias de um passado que não sei se aconteceu, se sonhei. Tem os amores que vivi antes de ti, e todos os que pensei viver a seguir. Tem as praias todas porque passei, as marés baixas e as marés altas, tem todas as ondas que se formaram e que não foram apanhadas, e, tem as marés vivas de Setembro que vêm até aqui e me molham os pés. Tem as mulheres que foram tuas e agora me povoam minúsculas num desconcerto de muitas vozes em teu redor a lembrar uma culpa antiga que eu nunca conheci. Tem estradas e casas e cheiros, um ribeiro ali ao fundo, um cavalo. Casinhas de aldeia e almoços em familia, tem uma familia que não é a minha mas que por breves instantes me alimentou a alma. Tem uma janela a dar para os telhados, uma noite de fogo de artifício, uma festa popular há muitos anos num castelo. Quando os castelos já nem existiam. Tem sono e fome e sede, uma capela perdida num monte, um campo de futebol de terra, vazio. E tem o silêncio e o som, tem árvores e plantas, a lua a nascer num céu ainda claro e a dor de ser eu, agora, aqui, com tanta coisa dentro…




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